ABSOLUTISMO RELATIVISTA E OUTROS TROÇOS
Por Dartagnan da Silva
Zanela
O finado Papa São João Paulo II,
em suas Encíclicas “Fides et Ratio” e “Veritatis Splendor”, e bem como o Papa
Emérito Bento XVI, em suas Encíclicas “Deus Caritas Est” e “Spe Salvi”, nos
advertem com suas palavras para aquilo que Roberto de Mattei qualificava de
ditadura do relativismo.
Mas, que trem é esse? Ou seria
essa tal de ditadura do relativismo? Quais seriam suas possíveis implicações? Quais
seriam suas mais nefastas consequências? Quais? Por partes, vejamos de que
tamanho é esse rolo.
Tornou-se um lugar comum na
cultura contemporânea e, também, uma das torpes pedras angulares da educação
modernosa de nosso triste país, a crença de que a verdade não existe; que, em
seu lugar, haveriam penas pontos de vistas divergentes, onde cada um teria, e
manifestaria, a sua verdade e, com base nisso, passou-se a bradar aos quatro
ventos que tal postura, cognitiva e moral, seria uma forma de emancipação onde
todos poderia então tornar-se livres e pensar com a própria moringa, de modo
crítico, muito mais do que crítico, sumamente críticos e..., bem, e o resto
vocês já estão carecas de saber.
Tal afirmação, quando ouvida de
maneira apressada e inquieta, realmente soa como um arauto libertador, um
anúncio reconfortante para legitimar a nossa gritante preguiça cognitiva. Mas,
por certo, como dizem os populares, quando a esmola é grande [barbaridade], a
gente tem de desconfiar. Então, desconfiemos juntos desse óbolo suspeito.
Primeiro problema que temos com
relação ao relativismo moral e cultural é que ele parte duma premissa
autocontraditória. Ora, se tudo é relativo, tal afirmação seria absoluta, logo,
insustentável. Aliás, fica a pergunta: o que usaríamos como critério para
fundamentar a absoluta relativização de tudo? O que? O grito, meu amigo. O
grito.
Se tudo é visto como tendo o
mesmíssimo valor, alguém, ou algo, acabará ditando, arbitrariamente, o que
deverá ser imposto a todos como sendo aceitável. Um exemplo, que bem ilustra
esse ponto, é a postura fofa da galerinha que se auto intitula como sendo a
turma da tolerância, os porta-vozes autointitulados das minorias.
Reparem, e reparem bem, que essa
gente é extremamente tolerante com todos aqueles que comungam de sua visão de
mundo, mas vertem, sem o menor pudor, toda a sua bile quando alguém ou algo tem
a desfaçatez de contrariá-los, de dizer-lhes uma única obviedade ululante que
seja.
Trocando em miúdos: no lugar da
liberdade para procurar com sinceridade a dita cuja da verdade, da compreensão da
realidade, como ela se apresenta aos seus olhos, passamos a viver sob o julgo
da arbitrariedade dos poderes constituídos, dos grupos ideológica e cinicamente
organizados, das ideologias ou, simplesmente, ficamos à mercê dos caprichos daquilo
que J. O. de Meira Pena chamava de as “capelinhas do Butantã”. Nesses casos, de
fato, o tal do livre-pensamento torna-se uma atividade criticamente impossível.
Um segundo problema, que em nosso
ver, merece ser destacado, é a confusão subjetivista que o relativismo acaba nos
induzindo.
Para deixar mais claro esse
ponto, lembro aqui, de memória, uma passagem onde Santo Agostinho afirmava que não
existe esse troço de minha verdade e de tua verdade, porque ela, a Verdade, não
é nem minha e nem tua.
Obviedade das obviedades. Sei
disso. A verdade não está naquilo que digo, ou numa ideologia, num partido, ou
no grito uníssono de um grupo organizado. Nada disso. A verdade está na
realidade [interior e exterior], e é para ela, como nos lembra Eric Voegelin,
que devemos voltar nossas vistas para dirimir nossas possíveis dúvidas sobre as
mais variadas questões, simplesmente porque a realidade preexiste a todos nós,
independe da existência ou não de todos nós e do que pensamos ou achamos dela;
gostemos ou não, ela continuará a existir quando não mais estivermos aqui.
Resumindo essa parte do entrevero:
como nos diz o poeta espanhol Antonio Machado, “a verdade é o que é e segue
sendo mesmo que todos digam o contrário”. Ou, como o poeta brasileiro Bruno
Tolentino nos ensina em seu livro “O mundo como ideia”, nós, na modernidade,
por tudo relativizarmos, por desprezarmos a primazia da verdade, da realidade,
acabamos por trocar o mundo pelas ideias de mundo, por concepções totalitárias
que nos são impostas no grito, na força e na marra, em nossa mente e na nossa
alma, quando nos vemos enfraquecidos e desarmados intelectual e moralmente pelo
relativismo.
Terceira implicação. Se todos os
bens culturais, valores, obras e ideias são tidos como sendo portadores do
mesmo valor, gradativamente, perdemos o senso de hierarquia, de importância,
reduzindo o indivíduo, com sua consciência individual, a condição duma criatura
atomizada que, para não se sentir diminuída nessa volúpia de falta de sentido e
orientação, acaba se permitindo ser devorada pelas multidões, como nos ensina
Elias Canetti e, por isso, acaba terminando como um reles homem-massa, medíocre
e facilmente manipulável, como nos aponta José Ortega y Gasset.
Sim senhor, hierarquia de valores
meu amigo. Somente o fato de não sermos capazes de cogitar a sua existência, de
considerarmos um absurdo que se ventile essa possibilidade, demonstra o quão
tomado estamos pela virose da ditadura do relativismo.
Se não conseguimos imaginar isso,
vejamos então alguns exemplos de disposição hierárquica de valores. Primeiro: os
mandamentos divinos que, por definição, estão acima dos mandamentos humanos. Segundo:
a Lei natural está acima da lei positiva. Terceiro: a bondade, a beleza e a
verdade estão acima da mentira, da deformidade e da maldade. Quatro: como nos
ensina o provérbio Hindu, citado por Heinrich Zimmer em seu livro “Filosofias
da Índia”, não existe nenhum direito que esteja acima do direito da Verdade.
Doravante, é claro que temos
conflitos entre esses valores, mas esses se dão porque nossa consciência moral
é limitada e deficitária, haja vista nossa humana condição. Mas, ignorar a
presença duma ordem axiológica em nada contribui para dirimir esses conflitos
que, diariamente, se fazem presentes em nosso coração. Pelo contrário. Apenas agrava,
pois, se agimos assim, acabamos por nos portar de modo similar a pombos
defecando no meio dum tabuleiro de xadrez, crente de que estamos fazendo uma
baita duma partida.
Noves fora zero, Miguel Reale, em
seu livro “Filosofia do Direito”, nos lembra que toda sociedade organiza uma
tábua de valores para si, apontando aquilo que ela considera prioritário e o
que ela tem como sendo secundário. Algo que, aliás, todos nós, individualmente
o fazemos. Não apenas isso. Dependendo de como organizamos a nossa tábua de
valores, de bens fundamentais, nós acabamos por dar um determinado sentido para
nossa existência e esse, por sua deixa, poderá vir a ser dignificante ou
aviltante, dependendo do modo como isso seja orquestrado.
(Aliás, vale lembrar que vivemos
num país onde a récita dum PATER NOSTER causa escândalo nas alminhas
politicamente corretas e, tal escândalo, evidencia como estão ordenados os
valores dessas pobres almas que se escudam na laicidade do Estado para camuflar
a essência lúgubre que sustenta as suas escolhas)
Por isso, quando consideramos
tudo relativo, sem querer querendo, acabamos por tirar a realidade do centro de
nossa existência e colocamos o nosso ego, soberbo e vaidoso, como coluna de
sustentação de nossos valores o que, em definitivo, é um convide tentador para
chamarmos urubu de meu loro, para invertermos de maneira brutal a ordem da
realidade, haja vista que, para uma alma tomada pelo absolutismo relativista,
real seria somente aquilo que o seu ego atomizado e sua patota ideologicamente
amestrada por mentes maliciosas disseram que o é.
Calma. Já estou terminando.
Quarto e último ponto. Considero
relevante, sobre essa problemática, hoje vivida por nós, que, não vejo
“solucionática” alguma em curto prazo. Quando o relativismo passa a ser a pedra
de toque da tábua de valores duma época, temos duas consequências lógicas praticamente
inevitáveis.
A primeira é o fortalecimento do
poder do Estado e dos grupos que o instrumentalizam. Se não existe verdade, a
liberdade de consciência perde a sua razão de ser e, em seu lugar, temos o
arbítrio duma autoridade [duvidosa] que ditaria o que é certo e o que não é. E
é aí, meu velho, que a porca torce o rabo, porque nesse momento vem a segunda consequência.
Ora, se tudo é relativo, se nada
pode ser considerado como sendo sumamente bom, belo e verdadeiro tudo passa a
ser nivelado na altura da feiura pura e simples, da mesquinharia e da
falsidade, fruto da hipocrisia relativista ou do cinismo relativizador.
Por exemplo, há alguns anos atrás
(2014), houve um evento numa universidade do Rio de Janeiro intitulado “Xereca
Satânica”, cujo título, dispensa maiores explicações. Detalhe: na ocasião
houveram várias críticas a esse troço e, frente a elas, o chefe do departamento
de Produção Cultural da referida instituição de ensino superior, afirmou que tais
críticas ao evento seriam uma forma de censura.
Absurdo? Eu, pessoalmente, não
tenho a menor dúvida disso. Mas, se tudo é relativo, se não existem verdades a
serem conhecidas, se não é conveniente dizer que existem valores que são
superiores a outros, tudo torna-se permitido, como nos admoesta Fiodor
Dostoievski. Ou, parafraseando G. K. Chesterton, o grande problema nesse
negócio de relativizar tudo não é que deixamos de crer na Verdade, mas sim, que
passamos a crer em qualquer coisa. Em qualquer coisa mesmo.
E, até onde sei, qualquer coisa,
nunca foi e nunca será uma coisa boa. Ou você beijaria indiscriminadamente a
boca de qualquer pessoa? Beijaria? Hum...
Gracejos à parte, penso que
podemos, e devemos, indagar: quem sai ganhando com essa zorra moral e cognitiva
toda? Quem? Pode ter certeza, cara pálida, que não sou eu, nem você. Não mesmo.
Agora deu pra tampa. Chega. Hora
do café.
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